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terça-feira, 5 de junho de 2007

Televisão ou partido político?

A decisão do governo Hugo Chávez de não renovar a licença da Rádio Caracas Televisão (RCTV) vem suscitando manifestações pró e contra, na Venezuela e América Latina, com repercussões em vários países.
O fato é paradigmático na história das relações entre a mídia, o campo da política e a sociedade.



Em 11 de abril de 2002, a oposição protagonizou um golpe de estado contra o presidente Chávez. À frente, o empresário Pedro Carmona, o líder sindical Carlos Ortega, setores do alto comando das forças armadas e duas emissoras de televisão privada que operavam no País: RCTV e a Venevisión, do magnata Gustavo Cisneiros.
O plano do golpe era perfeito, exceto por um “detalhe”: os golpistas esqueceram de combinar com a população. Em menos de 48 horas, o presidente que já estava preso, voltaria ao poder nos braços de mais de dois milhões de pessoas, mobilizadas por uma notícia divulgada pela CNN (em espanhol): Chávez não havia renunciado. A informação furava um bloqueio midiático patrocinado pelas grandes redes, que transmitiam desenhos animados e mentiam à população.


Uma emissora de televisão resulta de concessão pública. Cabe indagar: é papel de uma empresa de comunicação ser de “oposição” ou de “situação”? A meu juízo, nos dois casos estaria desservindo ao interesse público e à democracia. O jornal “O Estado de S. Paulo” respondeu a questão com a maior naturalidade (27/05/2007) e chamou a RCTV de “TV opositora”. Ora, como concessão pública, espera-se que uma emissora cumpra seu papel balizado por dois princípios maiores: prestar serviços de qualidade à sociedade e tratar a informação como bem público.



As emissoras de TV comerciais da Venezuela tiveram participação direta na tentativa de golpe e agiram à margem da lei. O próprio “Estadão” registra que o “protagonismo” do diretor da RCTV, Marcel Granier, no golpe de 2002, “a bem da verdade é admitido até por setores da oposição”. Não cabe a uma emissora de TV ser de “situação” ou de “oposição”. Para cumprir esses papéis, a sociedade elege líderes políticos que a representam em governos e parlamentos. A função de criticar, livre e autonomamente, governos e figuras públicas nada tem a ver com “oposição” nem golpismos.

Há uma semana, um grupo de 24 personalidades inglesas, lideradas pelo escritor Harold Pinter (Nobel de Literatura) e o cineasta John Pilger, divulgou no jornal “The Guardian” (26/05/2007) um manifesto apoiando a decisão do governo venezuelano. Junto-me a eles, compreendendo o alcance histórico desse gesto. Diz o texto: “A decisão é legítima uma vez que a emissora repetidamente fomentou a derrubada do governo democraticamente eleito do presidente Hugo Chávez”. E indaga, em outro trecho: “Imaginem as conseqüências se se descobrisse que a BBC ou o ITV fizeram parte de um golpe contra o governo britânico”. Pergunto ainda: por quanto tempo a CNN e a Fox News ficariam no ar se flagradas pelo governo Bush em aventura similar?

O jornalista Luiz Carlos Azenha (TV Globo, http://www.viomundo.com.br/) escreve: “É interessante que nunca tenha ocorrido aos donos da RCTV que deturpar informações, omitir, mentir e violar as leis pudesse ter alguma conseqüência”. Azenha reuniu em seu blog vasto material de pesquisa sobre o tema e a íntegra do documentário “A revolução não será televisionada”, que conta em detalhes a tentativa de golpe.



Pela primeira vez, na história latino-americana recente um governo popular enfrenta o poder antidemocrático da mídia, nos marcos do Estado de Direito, a despeito de quaisquer críticas cabíveis ou não ao projeto de governo de Hugo Chávez Frias.

Samuel Lima
Jornalista, coordenador do curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC (Santarém PA)
.
O blog do Luis Nassif ,a revista Época (para assinantes) e o Bob Fernandes do Terra Magazine iluminam ainda mais o tema.

2 comentários:

Unknown disse...

Walter,


À parte tudo que já foi dito e redito pelos dois lados sobre esta questão resulta inabordado , pelo menos com a profundidade que merece, o seguinte ponto :

O ato de Chávez foi arbitrário e ilegítimo por que não se escudou na lei.
Ponto. Isto é irrespondível. Indesmentível.
Em fato,o governo de Chávez "arranjou "um pretexto prá cassar a licença da emissora.
Repito, claramente, dentre os fatos relacionados na lei que podem levar a cassação de uma emissora naquele país NENHUM foi cometido pela televisão punida.
Inventou-se .
Armou-se.
Aí é que mora o perigo.
Ou se vive em um estado de direito , ou não.
E lá - na Venezuela - esse episódio prova que inexiste um sistema de leis que garanta aos seus cidadãos respeito aos direitos de cada um e de todos.
Tá na cara que Chávez protagonizou uma "vendetta"ao melhor estilo da máfia, prá vingar o apoio da RCTV ao golpe que pretendeu alijá-lo do poder.
Cabe também , até para os menos informados , a seguinte pergunta : por que Chávez renovou a concessão da Venevisón, emissora do poderoso grupo Cisneros?
Recordando - até 2004 Chávez chamava Gustavo Cisneros , dono da Venevisón, de "capo di tutti capi " dos gangsters das Tvs privadas.
No seu programa de TV , o "Alô, Presidente", Chávez chamou os donos dos quatro canais privados - Televen, Globevisón, RCTV e Venevisón - de "riñetera", como são chamadas as prostitutas em Havana.
Gustavo Cisneros teve papel destacado no golpe de abril de 2002 contra Chávez. Era na sede do seu canal de tv que os golpistas se reuniam. Quando Cisneros percebeu que Chávez ganharia o plebiscito cuidou de , com a intermediação do ex-presidente americano Jimmy Carter, fazer um acordo com Chávez.
E, claro, mudou imediatamente o tom do noticiário e cobertura de sua emissora.
Assim (desse jeitinho mesmo...) "salvou " sua emissora.
Tá certo isso?

Essa é a questão. Cada vez mais os venezuelanos estão nas mãos de um governante que não liga a mínima para as leis.
Simplesmente as ignora ou distorce, ou simplesmente revoga, posto que controla com mão de ferro todos os poderes da pobre república bolivariana (argh!).
Mas há os que acham diferente. São os mesmos que consideram democrático o governo de Fídel Castro, o insepulto ditador cubano .
A verdade, meu caro Walter, é que até chavistas ferrenhos coram de vergonha quando confrontados com as aberrações trazidas por Chávez e inscritas na chamada Lei de Responsabilidade Social do Rádio e televisão - Lei Resort - criada em 2004.
Imagine vc que tal "mandamento legal " permite a cassação de veículos que propaguem mensagens "antidemocráticas" ou mesmo "impróprias ".
Voce é capaz de supor em sua cabecinha o que um títere de Chávez pode armar prá cima de qualquer um "armado "com essa Lei?
Por hoje, fico por aqui.
Aliás, sempre fico aqui.
Abs

Walter Junior do Carmo disse...

Só a redação da lei já embute a intenção do ditador. Amanhã postarei em cima do seu comentário. Suas argumentações são robustas e pertinentes. Obrigado, Francisco