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terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Pinochet não deixa saudades!

Por João Alberto Capiberibe *




Quando abri a Internet e vi a manchete: Pinochet está morto, me vieram à lembrança os acontecimentos daquele dia distante do ano de 1973. Tudo aconteceu naquela terça-feira, 11 de setembro. Deixei a cama cedinho.O sol que insistia em não aparecer, se escondia por trás da cordilheira dos Andes tornando aquela manhã de fim de inverno mais cinzenta e fria. Precisava de algo quente para beber. Enquanto aguardava a água ferver para o café liguei o rádio, bem baixinho, para não acordar Janete e as crianças.

A voz grave do locutor da rádio anunciava “cinco horas e trinta e cinco minutos, aqui Radio Mineria, falando de Santiago”. Em seguida, música alegre, ritmada ao som de charangos e Zampoñas. Coloquei alguns objetos pessoais em uma valise. O suficiente para passar dois dias fora de casa. Tomaria o trem das sete e trinta para Santiago, repetindo o trajeto que havia feito a uma semana atrás atendendo a convocação da Unidade Popular para uma gigantesca manifestação de apoio ao Presidente Allende.


Naquele 05 de setembro, com o trem superlotado por pouco não sofri um grave acidente. A maioria de meus companheiros de viagem eram militantes vindos do sul para participar do ato. Era gente saindo pelo ladrão. Arrisquei embarcar de qualquer maneira para não perder o acontecimento histórico. Após ficar pendurado durante alguns intermináveis minutos no corrimão do lado de fora do trem em movimento, recebendo o impacto do vento frio que soprava naquela manhã, com as mãos congelando e já quase sem força, senti o apoio de braços de pessoas que perceberam minha aflição e arrastaram-me para dentro do trem, livrando-me da queda iminente.


Dessa vez, pensei, farei uma viagem tranqüila, afinal vou receber o visto de permanência na condição de exilado político e como não havia nem uma mobilização de massa programada em Santiago, a viagem de trem seria um passeio. Estava feliz com os documentos que receberíamos. Claro que eles não resolveriam todos os nossos problemas, mas para quem tinha atravessado a fronteira sem lenço e sem documento receber um papel de identidade que nos permitisse ir e vir no país onde estávamos morando era um passo importante.



Talca é uma província distante trezentos quilômetros ao sul de Santiago, conhecido por sua presunção em comparar-se com Paris e Londres. Talca,Paris e Londres, dizem plaquetas espalhadas nos lugares turísticos da região. Nas cercanias de Talca ficava a fazenda Puríssima, com suas belas pastagens e vinhedos, desapropriada pelo governo por sonegação de impostos e entregue à Universidade, que transformou a espaçosa casa patronal em pensionato para estudantes. Suas terras passaram a ser cultivadas coletivamente por camponeses em regime de cooperativa. A fazenda ficava no Vale Central, a poucos quilômetros da cordilheira dos Andes, cujos picos eternamente cobertos de gelo, Vinhedos, Sauces e Álamos formavam um horizonte de cartão postal. Ali morávamos, completamente integrados e convivendo harmoniosamente com toda a gente do lugar.


Apressemei-me para terminar o café, peguei a valise e caminhei em direção ao aparelho de rádio para desligá-lo. De repente a música foi interrompida e sem prévio anúncio, entrou falando o presidente Salvador Allende:


Concidadãos,

Diante destes fatos eu não vou renunciar
Só me cabe dizer aos trabalhadores: Eu não vou renunciar.
Nesta hora de transição histórica pagarei com minha vida a lealdade com o povo


E tenho certeza que o grão semeado nas consciências de milhares de chilenos não pode ser esquecido definitivamente .

Eles têm os meios de nos dominar
Mas não se podem deter os processos sociais, nem com crimes, nem com a força.
A história é feita pelo povo.


Trabalhadores de minha pátria:
Agradeço a lealdade que sempre tiveram, pela confiança em quem foi apenas o intérprete de grandes desejos de justiça, que prometeu respeitar a constituição e a lei e assim o fez.
Neste momento, o último em que posso falar-lhes, quero que aproveitem a lição. O capital estrangeiro, o imperialismo unido à reação criou o clima para que as forças armadas, rompendo sua tradição, a que Scheinder ensinou e que reafirmou o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que espera voltar ao poder com a ajuda estrangeira, para defender seus lucros e privilégios.
Saibam e creiam que fatalmente se abrirá o caminho para todos os homens livres que construíram uma sociedade melhor.
Viva Chile!
Viva o povo!
Viva os trabalhadores!
Estas são minhas últimas palavras, tenho certeza que meu sacrifício não será em vão.


Permaneci alguns minutos distante do mundo, parado a dois passos do rádio, o pensamento vagando sem rumo, pouco importavam agora os documentos, pois já não significavam quaisquer garantia a seus portadores. Naquele momento começava a desaparecer em meio à inusitada violência, a mais longa e estável democracia do continente, e com ela a generosidade de um regime que recebia perseguidos políticos de todas as ditaduras da região.


Aos vinte e seis anos não poderia queixar-me de falta de experiência para encarar aquele tipo de situação. No Brasil a intolerância dos militares nos havia custado dois anos de penosa militância clandestina, em seguida, um ano de cárcere que poderia ter se prolongado, sabe Deus, por quanto tempo, se não fora o desejo de liberdade aliada à coragem de Janete que pôs fim repentinamente, através de uma fuga bem sucedida, à sentença condenatória proferida por um tribunal militar da ditadura.


De Belém, depois de escapar do hospital, disfarçado de médico, subimos de barco durante vinte cinco dias pelo Rio Amazonas até Guajaramirim, onde cruzamos a fronteira Boliviana. Naquele país, mal tínhamos aprendido a dizer “Buenos dias” e um militar golpista assumia o poder, passando a dar ordem unida a toda a sociedade, era a ditadura do General Hugo Banzer, o mesmo que anos depois, pela via democrática, voltaria a ocupar a presidência do país e que morreria na metade do mandato.


Foi outro Deus nos acuda para escapar da repressão juntamente com Janete e nossa filha Artionka, então com dez meses. Se no Brasil já era complicado viver na clandestinidade, imaginem em um país, onde você não domina o idioma? Em algumas circunstâncias, tive que passar por surdo mudo para sobreviver, foram quatro meses de um lado a outro, sem dinheiro e sem documentos, até chegar à Meca da democracia, o Chile de Salvador Allende, na véspera do natal de setenta e um. Deixando, finalmente, pra trás um lugar onde comemos o pão que o diabo amassou.


Naquela manhã fria e cinzenta de setembro, através das ondas do radio e pelas palavras do Presidente Allende fui comunicado que tudo não passara de um sonho, que o sonho do socialismo democrático, antes que a noite findasse, se transformara em um trágico pesadelo, tragando seu principal protagonista, o Presidente Allende, também o povo chileno, que em algum momento da história fez o mundo sonhar com a utopia da sociedade igualitária e do homem novo.


Uma vez mais, sem lenço e sem documentos, teríamos que colocar o pé na estrada, abrir novos caminhos em busca de uma saída, desta vez mais complicada.Com o nascimento do casal de gêmeos Camilo e Luciana em Santiago, a família ampliou pra cinco pessoas, e ninguém em nenhuma hipótese ficaria para trás como foi sugerido, caso optássemos por cruzar a fronteira Argentina pelo Passo Nevado a doze quilômetros de onde morávamos. Decidimos aguardar os acontecimentos.



Dois dias depois o exército cercou a fazenda, por milagre escapamos de ser presos, no final desse mesmo dia fomos retirados às pressas por um padre, que também era nosso professor na Universidade de Chile em Talca, numa operação de emergência, onde deixamos tudo pra trás. Ele nos levou para a casa episcopal. Sob a proteção do Bispo permanecemos confinados lá até o final de outubro, quando um representante da ONU, em carro diplomático, mais um veículo da Cruz Vermelha Internacional, nos conduziu em comboio até o campo de Refugiados de Padre Hurtado. Protegidos pela bandeira da ONU, ali permanecemos até o dia onze de janeiro de 74, quando, transcorridos exatamente quatro meses do golpe, embarcamos para Toronto, no Canadá.

Trinta e três anos depois, o tempo e a distância não conseguiram apagar as lembranças do Chile generoso de Allende e do carinho como fomos recebidos pelo povo chileno, no entanto também é verdade que a lembrança do tirano Pinochet não nos saiu da memória. Quando de sua prisão em Londres em dois mil, sentimos o quanto é reconfortante a sensação de justiça, embora incompleta, embora passageira. Foi-se sem purgar pelos seus crimes, cada um mais hediondo que o outro, mas certamente a justiça divina não falhará.


Baixo a cortina desse episódio lembrando com grande tristeza o assassinato do grande compositor e cantor popular chileno Victor Jara, executado com requintes de crueldade quando se encontrava, juntamente com uma multidão de presos no Estádio Nacional em Santiago. Insistia em continuar cantando e tocando sua guitarra e por isso teve suas mãos e sua língua decepadas antes de ser fuzilado. Por esse crime e tantos outros, Pinochet responderá por toda a eternidade.


O ditador partiu deixando um rastro de sangue, dor e ressentimento difícil de apagar da memória do povo chileno. Partiu dessa vida acobertado pelo manto da impunidade assegurada pelo império hegemônico do norte a seus amestrados ditadores sanguinários e corruptos daqui, do lado debaixo do equador. Foi assim no Chile, foi assim em toda América do Sul.



* Ex-governador e senador do Amapá, ex-exilado político no Chile de Allende.

7 comentários:

Citadino Kane disse...

Walter,
Muito legal o texto do Capi, mais uma página virada de nossa história latino-americana.
Abraços,
Pedro

Anônimo disse...

Walter,que pena o Capi aprendeu pouco com Allende,no entanto assimilou bem as sacanagens de Pinochet.Desvio de dinheiro público,compra de votos,traição de companheiros,centralismo de poder e outras cositas.Talvez sua história não valha um tostão furado,pois, como pode um militante e ativista,sem saber o idioma,fugindo de todos,esquecer de planejar o mínimo,principalmente o familiar,pois irresponsavelmente,naquele contexto,se permitiu engravidar sua companheira,pode!

Walter Junior do Carmo disse...

Páginas ensopadas de sangue, Pedro, muito sangue inocente.
Quanto às afirmações do nosso assíduo Anonymous, no primeiro e no segundo parágrafos há controvérsias. Agora "se permitiu engravidar a companheira" é... É... É dose pra dinossauro. É impressão minha ou senti uma ponta de admiração do companheiro Anonymous pelo generalão?

Anônimo disse...

imparcialidade e respeito à opinião,meu caro cara-pálida,afinal vc pode ter sua paixão pelo home,mas,daí ficar servindo de amortecedor de conflitos,é dose pra elefante.Como diz o Ruy Smith "o Walter é um caso clínico,principalmente quando o tema é o Capi",portanto, "assumido",baixe a sua bolinha,ok!.

Walter Junior do Carmo disse...

Sou um caso clínico e parcial quando o tema é Rui Smith, também. Sou um caso clínico e parcxial quando se trata de amigos meus. Eu não me escondo. Você que levantou a melancia, baixe voce, Anonymous.

Anônimo disse...

Ei anônimo!
Capi come é bem, agora não tem nada p/ você meu caro. Como "afirmei" ele come muuuuito bem, sei disso, mas ele não come boiola... o caso dele é mulher mano!!!

Walter Junior do Carmo disse...

Vixe!